* Gustavo Adolfo dos Santos é mestre em Antropologia pela Unicamp e coordenador de projetos do Centro de Estudos da Konrad Adenauer no Rio de Janeiro.
Talvez uma proporção baixa de católicos brasileiros já soubesse da publicação de uma exortação apostólica pós-sinodal pelo papa Bento XVI, quando o site do jornal “O Globo” estampou, senão em letras garrafais, pelo menos em expressões sensacionais: “Papa diz que segundo casamento é uma praga – união de divorciados corrói católicos”.
Uma pessoa com tendências mais irônicas poderia responder: ora, e o primeiro casamento, também não é? Se não fosse (uma praga), não haveria o segundo... No entanto, a intenção dos editorialistas de “O Globo” não terá sido fazer pilhéria, mas simplesmente chamar a atenção do leitor, através da síntese distorcida de uma das centenas de considerações feitas em um documento extenso e profundo como a recém divulgada exortação sobre a Eucaristia, “Sacramentum Caritatis”.
A estratégia com certeza funcionou: clicar no link para o dito artigo é um ato quase irresistível para quem ficou curioso em saber de que modo Bento XVI conseguiu insultar e magoar milhões de pessoas em seus segundos, ou terceiros etc. casamentos. Pois é disso que parece se tratar: se o segundo casamento é chamado de “praga”, a ele (e aos que o contraem) se associam significados como “coisa importuna ou nociva”, “maldição” e “que causa malefícios, que prejudica a paz” (todos coletados no Dicionário Houaiss).
Após o clique, uma citação mais ampla do documento encontrada na reportagem (assinada originalmente pela BBC Brasil) não resolve a distorção, e mostra que é preciso ter muito cuidado com citações livres. Se um trecho da exortação é de fato reproduzido, somente um ligeiro deslocamento, ou outra distorção, do contexto original pode comprovar a afirmação de “O Globo”.
Examinemos o processo: primeiro, a exortação pós-sinodal é parafraseada na reportagem, de modo que o objeto de discussão dessa seção particular do documento é definido como “o segundo casamento de pessoas já divorciadas”. Depois, cita-se um trecho mais longo, que, obviamente referindo-se a algo mencionado anteriormente, afirmar tratar-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos (Sacramentum Caritatis, § 29).
Imagina-se assim – lendo-se “O Globo” – que o que se trata de um problema pastoral espinhoso é “o segundo casamento”. No entanto, na exortação, o “problema pastoral” não é simplesmente “o segundo casamento de pessoas divorciadas”, como quer fazer crer “O Globo. Leiamos as palavras de Bento XVI, aquelas imediatamente anteriores às citadas na reportagem: “Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimonio, se divorciaram e contraíram novas núpcias”.
Essa “situação dolorosa” compreende três aspectos, que, levados em conta juntamente, explicam a gravidade do problema: o sacramento do Matrimônio, que é um compromisso solene e sagrado, indissolúvel e assumido de modo absolutamente livre pelos noivos; o divórcio, que é uma trágica contradição em termos, diante do ato realizado anteriormente; e, finalmente, o segundo casamento, conseqüência de uma série de coisas, mas também de uma incompreensão das (ou recusa em aceitar as) implicações de uma escolha livremente feita no passado.
Uma leitura justa dessas linhas levaria à conclusão de que a praga a que se refere Bento XVI (uma imagem usada para acentuar principalmente a quantidade de casos ocorridos) é, sobretudo, a dissolução de um compromisso humano decisivo como a união entre o homem e a mulher, que cria a família, ambiente de procriação e proteção integral de novos seres humanos. O segundo casamento, nesse contexto, viria a enfraquecer ainda mais o caráter único e exclusivo da união matrimonial, e seria um sinal da impermanência e da inconstância da fidelidade humana. De fato, um problema pastoral espinhoso e complexo. Mas “O Globo” parece não ter entendido isso.
Aceitar a realidade (e até a prevalência) do divórcio nos tempos atuais não significa ter que aplaudi-la ou até mesmo conformar-se com ela. O papa, mais uma vez (depois de Regensburg), tem a coragem de definir uma situação dolorosa com conseqüências graves como tal. Põe, como se diz, o dedo na ferida. Quem não tem a coragem de debater honestamente com essa proposta (aliás, feita exclusivamente na base da autoridade moral), é a imprensa secularizada e, infelizmente, muitas vezes preconceituosa contra o cristianismo.
Esta, exemplificada pelo “O Globo”, procura causar nos leitores “escândalo” com a mensagem do papa, na linha do “como ele pode ser tão insensível?” Mas, na verdade, ela se faz “escândalo”, no sentido bíblico, de “pedra de tropeço”, quando banaliza e distorce um ensinamento correto, feito com solicitude e atenção paternais, sobre um mal que cada vez mais aflige a pessoa nas sociedades modernas, que é cada vez menos capaz de manter um compromisso livremente assumido, e fazer dom sincero e permanente de si mesma.
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