Na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe em Aparecida (V CELAM), a Igreja do continente terá de enfrentar um novo contexto sócio-econômico e cultural, para o está buscando caminhos, pois apesar das grandes mudanças em relação ao contexto anterior já estarem presentes na Conferência de Santo Domingo, hoje estamos muito mais conscientes de que o mundo é diferente do que naquela época.
Várias situações de injustiça e exclusão continuam a nos desafiar, tais como as desigualdades sócio-econômicas, a destruição física e cultural das populações indígenas, a questão da mulher, etc. Surgiram novos desafios, como as questões da bioética, a degradação do meio ambiente e o avanço de uma cultura cada vez mais individualista, sem compromisso social e incapaz de encontrar um sentido para a vida e paras as relações humanas.
Por outro lado, a sociologia havia construído a imagem de uma progressiva perda da dimensão espiritual, com o desenvolvimento, a urbanização e a racionalidade técnico-científica. Mas não é isso que tem sido visto. O crescimento das seitas e de novas manifestações de relação com o sagrado e o florescimento dos movimentos católicos aponta para a permanência e até um novo ímpeto das experiências religiosa.
Diante desse painel complexo, a Igreja latino-americana é chamada a uma “mudança de paradigma cultural”. Esses paradigmas são modos de ver a realidade e refletir sobre ela, a partir dos quais organizamos nossa vida e tomamos decisões.
Quando as mudanças a nossa volta se tornam muito grandes e radicais, como está acontecendo agora, é imperativo mudar os paradigmas vigentes, para fazer frente à nova situação.
A Conferência do Episcopado de Medellín, em 1968, por exemplo, marcou uma dessas grandes mudanças na Igreja latino-americana.
Ela aprofundou seu sentido de “povo de Deus”; percebeu a necessidade de um compromisso com os pobres que assumisse a dimensão política; assumiu o papel de denunciar as injustiças e se colocar contra os governos autoritários que dominavam o continente.
A antropologia integral
Que novo paradigma se apresenta em nosso horizonte? Podemos defini-lo como uma “antropologia integral” – uma visão global do ser humano que não o espiritualiza, numa perspectiva intimista e alienante, nem o reduz a sua dimensão material, como se bastasse a superação das contradições da sociedade para chegar a sua felicidade e realização (contradições essas que nunca serão plenamente superadas, diga-se de passagem). Ele está sendo construído em muitas experiências, mas três elementos são importantes para caracterizá-lo:
1. A redescoberta do conceito de pessoa humana. A sociedade burguesa nos pensa como indivíduos isolados, sempre defendendo interesses particulares. O socialismo, tal qual praticado nos anos 60 e 70, tendia a ver apenas a ação coletiva, desconsiderando o valor de cada um. O conceito de pessoa unifica os dois princípios, reconhecendo a dignidade pessoal, e reafirmando que a pessoa só se realiza em uma ação coletiva.
2. A busca pelo sentido das vivências humanas, tais como os momentos de celebração e festa, ou os de sofrimento e morte. Buscam integrar essas vivências à luta política por uma sociedade mais justa, criando uma nova unidade tanto na vida interior como nas manifestação sociais. Nesse sentido, são experiências sempre marcadas pelo fascínio e pela beleza, enquanto elementos fundamentais para o se tornar cristãos.
3. Não fogem da questão do desejo, nem buscam abrigo em esquemas moralistas. Pelo contrário, são experiências onde se redescobre a experiência religiosa como fonte de sentido e de realização plena do desejo mais profundo do nosso coração e se percebe a insuficiência dos esquemas moralistas tradicionais.
Para compreendermos como se estrutura essa antropologia integral, pode ser útil tomar um exemplo, como a encíclica de Bento XVI, a “Deus é amor”. Vejamos sua estrutura e como ela nos apresenta uma visão integral e não fragmentada da pessoa humana....
A encíclica explica que o amor é desejo da beleza e do outro. Parte, portanto, de uma valorização – e não de uma condenação – do desejo. Constata, porém, que esse desejo facilmente degenera em posse, que instrumentaliza e sufoca o outro. Para que o desejo original se realize, ele deve evoluir para uma dimensão de doação, que não elimina, mas completa o desejo. Estamos enfrentando, nessas passagens, os problemas da afetividade dos jovens, de sua educação rumo à maturidade, dos conflitos conjugais, do machismo, etc. Os filhos aparecem como o primeiro fruto desse amor que se doa ao outro, e por aí caminhamos em direção ao enfrentamento das questões da bioética.
Como esse amor que é doação tende a se expandir cada vez mais, não pode se fechar entre os amantes e, quando muito, chegar a seus filhos. Ele deve ser doação e compromisso com todos. Eu não posso ser plenamente feliz com minha família se não percebo que meu amor é doação e que essa doação deve chegar a todos os que sofrem. Não existe mais divisão entre a dimensão íntima do amor e o compromisso com a transformação da sociedade. Essa é uma antropologia integral!
Caminhar nessa perspectiva de uma antropologia integral é o caminho que se abre para a Igreja latino-americana, para que possa se manter fiel a seus compromissos históricos e enfrentar seus novos desafios. Esse é a grande tarefa dos bispos em Aparecida! |