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"Força é mudares de vida"
 
Juliana P. Perez

Juliana P. Perez é doutora em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

O poeta Bruno Tolentino buscou, em sua obra, "questionar as bases filosóficas da cultura ocidental a partir do momento em que a razão deixou de ser compreendida como uma abertura à realidade - sempre maior do que ela mesma - e passou a ser concebida como uma medida do real".
 

... denn da ist keine Stelle,/
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.

... pois ali ponto não há/
que não te mire. Força é mudares de vida.

(“Archaïser Torso Apollos” , R. M. Rilke;
Torso arcaico de Apolo, trad. Manuel Bandeira)

Estranhamente isolado não em um lugar, mas em um tempo, era o torso arcaico em que Rilke enxergava um desafio a si mesmo – assim também a obra de Bruno Tolentino: clássica, bela, forte, estranhamente isolada em seu tempo, embora sempre tenha se nutrido de suas tensões. Ali também “ponto não há que não te mire”: os principais livros que Tolentino, falecido no último 27 de junho, publicou no Brasil – As horas de Katharina (1994), Os deuses de hoje (1995), A balada do cárcere (1996), Anulação e outros reparos (1998), O mundo como idéia (2002) e A imitação do amanhecer (2006), ainda nos fixam intensamente, à espera de uma resposta pessoal aos problemas estéticos e filosóficos que eles colocam. Já é hora de decidirmos deixar de lado o imenso anedotário em torno do poeta e aceitar o desafio.

E não é pequeno: trata-se de uma obra que pretende nada mais nada menos que questionar as bases filosóficas da cultura ocidental a partir do momento em que a razão deixou de ser compreendida como uma abertura à realidade – sempre maior do que ela mesma – e passou a ser concebida como uma medida do real. Este é o tema de O mundo como idéia, que recebeu os prêmios Jabuti e Ermírio de Moraes. Os ensaios que o introduzem não lamentam a inevitável formação de uma “idéia” sobre o real, mas denunciam os riscos de sua fixidez. É de se perguntar por que se atribui à “Idéia” – definida em um dos poemas como “uma perfeita construção/ sem as falhas da vida [...]”(p. 403) – as características de um mal, de um risco, de uma tentação, de uma morte. Por que se opõem à imagem da “Dama Idéia” termos como “mundo real”, o “mundo como tal”, a “realidade”? Afinal, haveria algo mais demodé e superficial que acreditar na existência de algo “real” – ou ainda: há algo mais na contramão do que chamamos de pós-modernidade do que a visão de mundo aristotélico-tomista, abertamente assumida no livro? Sem dúvida, Tolentino sempre se arriscou a ver-se, como Brás Cubas, “privado da estima dos graves e do amor dos frívolos”... 

Mas pouco importa se concordamos ou não com um escritor – em primeiro lugar, importa compreendê-lo. E para tanto, é preciso observar que, para Tolentino, a recusa do desaparecimento do real é o cerne de sua crítica a um pensamento que, após tentar construir um sujeito absoluto e autônomo, mergulha na tentativa oposta – e igualmente exasperada – de medi-lo, analisá-lo e desconstruí-lo. Tolentino localiza a origem da posição intelectual que sistematicamente se deixou seduzir pelos conceitos no final da Idade Média; verá seus exemplos na pintura do renascimento italiano – na de Paolo Ucello, entre outros – e seu auge na filosofia elaborada por Kant, Descartes e Hegel, a “chatíssima Trindade”, como ele disse em uma entrevista de 2003.

O “drama da razão” que luta entre se apegar a uma idéia ou se abrir à realidade repete-se em A imitação do amanhecer na figura de um amante que, por recusar a morte do amado, mumifica-o e passa a recordar sua presença. A estranhíssima narração emoldura, na verdade, uma filosofia da História que coloca em discussão duas visões de mundo: uma “imita o amanhecer” e deseja escapar ao sofrimento – como flamingos que voam na direção oposta do ocaso, refletindo o sol em suas asas avermelhadas –; outra aceita a despedida, como o cervo da Lapônia curva sua cabeça majestosa à descida da noite que, naquelas regiões longínquas, durará vários meses.

Os dois livros representam as duas tendências principais das obras de Tolentino: as de caráter mais abstrato, cujo exemplo maior é O mundo como idéia, e as de caráter narrativo, em que uma idéia principal segue as lições de Eliot toma corpo em um “correlato objetivo”, uma história, como As horas de Katharina, A balada do cárcere e A imitação do amanhecer. Cada poema a seu modo, todos eles apresentarão as passagens de um caminho filosófico e existencial cujo ápice são a aceitação do sacrifício e a conseqüente visão da vida ressuscitada. Por este motivo, entre todas as personagens – o narrador de A imitação do amanhecer, o “Numeropata” d’A balada do cárcere, Katharina –, criadas por Tolentino para representar o drama da razão, esta última sempre foi a preferida: Katharina resume as paixões da alma, o combate entre o apego à ilusão e a abertura ao real e, enfim, o encontro com Cristo como fonte de paz.

“Morre o poeta Bruno Tolentino”, diziam as manchetes há um mês. Talvez só agora comece a viver como poeta. Pois embora seja possível que – como um torso arcaico, tardiamente reencontrado entre escombros  – a obra de Tolentino continue a ser quase desconhecida da maior parte da crítica e do público leitor, ela restará por aí, estátua perdida da língua portuguesa, até que a encontrem e percebam o seu olhar a sugerir: força é mudares de vida.

 

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