Vocês sabem o que é, em poesia, “enjambement”? Vou tentar sintetizar: é quando há uma quebra no verso; é quando ele termina, mas seu sentido se completa só no seguinte. Reparem neste trecho de um famoso soneto de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
Não há ali o enjambement. Embora o conjunto da estrofe forme uma unidade e, claro, o sentido de cada verso se defina também pelo contexto, cada linha tem a sua unidade sintática. A despeito de assonâncias internas, a rima final é que marca o ritmo do poema. Agora vejam isto:
“Porque é impossível, como inútil, conceber
a comoção da vida inteira como apenas
um desbarate, certos fatos, certas cenas,
minuciosos como um lento alvorecer,
insistem em retornar-me assim, entre as pequenas
vinhetas do arlequim de luz que anda no ser.”
Percebam que há, sim, as rimas finais, a exemplo do trecho de Camões, mas a leitura do poema requer, em nome do sentido, que se evite a pausa ao fim de cada verso. O ritmo da leitura muda, e surge um novo e original encadeamento. A poesia se torna, assim, dotada, no mínimo, de duas músicas: a marcada pela rima final dos versos tomados em sua linearidade e a outra, que se obtém quando se busca o sentido, a sintaxe. Por isso foi um recurso muito usado no Simbolismo, como todos devemos ter aprendido na escola. Afinal, buscava-se a poesia também como uma evocação.
Alguns poetas são mestres nessa arte. É o caso de Bruno Tolentino (autor dos versos acima), que acaba de lançar A Imitação do Amanhecer. Ao lado de Mário Faustino, é quem melhor soube —e, felizment, sabe — usar o enjambement na poesia brasileira contemporânea. Na terça-feira [27/junho/2006, nde], participei de um bate-papo com ele na livraria Fnac, em São Paulo. A sala lotada soube ouvir suas maravilhas em prosa. Abaixo, um dos 537 sonetos do livro:
Penso nos mármores caídos; na figura
do Antinoo sem nariz de Olímpia; nos dois braços
daquela Vênus que os perdeu e ainda os procura
de um patamar de escadaria; nos pedaços
sozinhos que ninguém consola; nos cansaços
do amor, da mão, da esmola... Penso na arquitetura,
essa efusão da pedra, seu triunfo e os espaços
que nos lega, vazios... Penso na noite escura
que a eterna Alexandria finge desconhecer
enquanto tira de uma perna um deus qualquer
que agonize por ela... Penso nela, o avestruz
que se recusa a vê-la como São João da Cruz
a descreve e desvela; penso na flor do ser,
tão bela quanto breve entre essa noite e a luz...
Chamei a atenção para um recurso técnico de que Bruno é mestre. Porque admiro o seu rigor. Mas, tão importante quanto a técnica, ele sempre teve o que dizer. Leiam A Imitação do Amanhecer. Requer, é verdade, algum esforço e, talvez, alguma pesquisa. Mas é certo que ganha muito na trajetória.
*Reinaldo de Azevedo é articulista da revista Veja e mantém seu o Blog hospedado na Veja online. Foi redator-chefe das revistas Primeira Leitura e Bravo!, editor-adjunto de Política da Folha de São Paulo e Coordenador de Política da Sucursal de Brasília, diretor de redação do site e da revista Primeira Leitura
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