O Senhor prometera nos compensar os anos
que a legião dos gafanhotos devorara,
meu coração, mas a promessa era tão rara
que achei mais natural vê-Lo mudar de planos
que afinal ocupar-Se de assuntos tão mundanos.
Assombra-me, portanto, ver uma luz tão clara
fecundar-me as cantigas, coração meu – repara
como crescem espigas entre escombros humanos...
Naturalmente, quem sou eu para que Deus
cumprisse em minha vida promessa tão perfeita,
e no entanto ei-Lo arando, limpando os olhos meus,
fazendo-os ver que, no trigal em que se deita
a luz dourada e musical, se algo perdeu-se
foi como grão – entre a seara e a colheita.
II. 63
Há algo mais que me ocorre a propósito disto,
um algo mais que há de ser sempre a diferença
entre a vaga oratória que chamamos de “crença”
e o sentido da História: esse “algo mais” é o Cristo.
Ou Jesus, se preferem; ou Joshua, o homem visto
em seu corpo de glória. A visão era intensa,
mas não era outra imagem: a Perfeita Presença
não é um personagem ou uma noção, é um quisto,
uma intrusão carnal por sob o imaginário
de cada ocidental. Que pode não segui-Lo,
reembobinar a História, ater-se a isto ou àquilo,
e dar o resto às Parcas... Mas resta que, ao contrário
do óbvio e do imprevisto, o Verbo, a Forma e o Estilo
são o Corpo do Cristo, o uno por trás do vário.
II. 64
Ninguém fará jamais da mera negação
um solo firme, um chão em que edifique nada,
e a fábula do ser é uma edificação,
que fazer...? Edifica-se a Cruz quando a alvorada
prega os braços da luz num muro, ante a calçada
de um terreno baldio, num vazio, num vão
entre este mundo e seus reflexos na amplidão:
é ali que o ser, na escuridão crucificada,
recobra uma vez mais solidez e estatura.
Se a História fosse apenas uma charada triste,
uma tirada à parte do Todo, à criatura
ainda lhe restaria aquela Cruz em riste
de encontro a um Céu em derrocada: “Deus existe”
(soluça o nada); “Um corpo morre mas procura-O!”.
III. 116
Deixai-me entre esses dois extremos exemplares:
a dor elementar, de Estela senciente,
de um grande cervo branco ante a noite iminente,
e a rosa itinerante de todos os lugares,
de todos os instantes de Alexandria... Os pares
perfeitos são opostos, e entre um deles, à frente
um sol como fantasma, atrás a luz cadente,
hei de durar sozinho enquanto tu durares,
ó labareda ao longe, ó cego atrás do lume,
ó vivo amor da viuvez como perfume,
ó limpa, ó lúcida altivez, ó cervo agora
e para sempre oposto à imitação da aurora,
que o velho Egito diviniza!
Numa saudade é a eternidade que agoniza.
As horas de Katharina
(Companhia das Letras, ganhador do Prêmio Jabuti em 1994)
Os rascunhos e a túnica
II
Existe a realidade e existe o sopro
do real, a vertigem instauradora;
existe aquele susto e, mais não fora,
existe a grande aspiração do corpo.
Porque existe no corpo uma incorpórea
Inquietação, a vocação do morto
em ser mais que seu corpo. Porque o corpo
nesta vida estraçalha-se por fora
mas é salvo por dentro. Existe aquilo
que os sentidos agarram na corrida
e largam para trás, por não feri-lo
demais, o corpo ponto de partida.
Nobre demais para viver tranqüilo.
Pobre demais para conter a vida.
105
Celebrar este mundo adivinhando
a incurável beleza, a inabalável
certeza do esplendor interminável
da luz de Deus, aurora ruminando
para sempre a quietude do imutável.
Somos reflexos dessa luz, um bando
de flamingos ardendo, misturando-
se ao sol nascente, ao inimaginável
incêndio indescritível, todo asas,
todo luz... Somos feitos como brasas
abrindo o vôo, somos como o vôo
dos flamingos em brasa ao oriente...
E nunca há de se apagar aquele ardente
sol perfeito que neles se espelhou.
O mundo como idéia
(Editora Globo, Prêmio Jabuti de 2003)
Ao divino assassino
[...] Talvez na pressa,
no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,
metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão
de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta. Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,
se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha
enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso: ela morreu... Hoje, amanhã,
enquanto Te aprouver e até que dê
a palma do prego e o último verso à traça,
vai dor – mas Amém! Não há porque
amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,
mata, Senhor, que a morte não faz mal!
Paray-le-Munial, 1979
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