O autor, jornalista, é professor da Faculdade de Relações nternacionais da PUC/SP e editor da revista Núcleo.
Palestra proferida em 17 de agosto de 2000, em evento promovido
pelo Núcleo Fé e Cultura
Não me questionei sobre os motivos que levaram alguém a indicar meu nome para integrar o Núcleo Fé e Cultura, muito menos que motivos me levaram a aceitar dele participar. Acedendo ao convite que me fez padre Vando para fazer esta exposição, não me preocupei com as razões que o levavam a me convidar nem com as que me levaram a concordar. Mas, depois, e muitas vezes, perguntei-me como eu entraria nas finas teias que ele vem tecendo. Procurei saber – e seguramente não consegui nem conseguirei – que impulso me tinha levado a dizer “sim” a quem me desafiava a falar sobre padre Brown neste Núcleo.
Sem ter respondido a essa angustiante questão, eis-me aqui discorrendo num núcleo de estudos sobre fé e cultura sobre as artimanhas da razão usadas por um padre, e sobre um autor que os estudiosos da literatura conhecerão muito mais do que eu. Não se pense que essas palavras são daquelas que, a rigor, não devem ser proferidas. Elas reproduzem um sentimento, e ao mesmo tempo lhes dizem com toda a simplicidade com quem terão de se haver: um homem preocupado com a política, portanto, com o Poder, que se atreve a adentrar por caminhos dos quais não há mapa confiável. E, para que se tenha a idéia de quais angustos sendeiros trilhei até agora, digo que pior que andar por caminhos desconhecidos é saber que, a partir do instante em que confessei ser um cultor do Poder – e lá se vão anos desde que cuido desse produto do Príncipe do Mundo – sou obrigado a dar razão a Chesterton quando ele afirma que “...power can only make ugliness uglier”. O que, numa tradução não juramentada, poder-se-ia ler assim: “...o poder só pode fazer a feiura mais feia”. Creio que essa confissão já basta para que padre Brown me deixe ir sem necessidade da presença da polícia para que eu responda pelos crimes que irei cometer daqui para a frente.
Padre Brown não é conhecido apenas por sua sabedoria. Se há um livro, cujo título se refere a essa virtude, há outro que nos mergulha na dúvida. É O escândalo do padre Brown, que abriga vários contos, entre eles um, com esse mesmo título, que encerra uma das mais agudas e ferinas críticas à imprensa que encontrei ao longo de meus quase 50 anos de militância jornalística. Na verdade, o padre não é como os detetives que fizeram a “literatura negra” nos Estados Unidos nem, muito menos, como os mestres da dedução, cofiando um bigode e fazendo trabalhar suas células cinzentas, como Poirot, tomando cerveja e cultivando orquídeas, como Nero Wolf, ou procurando ser científico como os Queens. Brown é um personagem do mundo, no sentido de que, de fato, dá-nos a sensação de que está vivo porque conhece os homens, sua grandeza e suas fraquezas. Ele tem uma sabedoria toda sua. Ela se traduz no apego mais do que visceral ao bom senso, e na recusa a aceitar fatos que contrariem o que a razão toma como natural.
“O crime”, costumava dizer o padre, “é como qualquer outra obra de arte. Não me olhe surpreendido; crimes não são as únicas obras de arte que saem de uma oficina infernal. Mas qualquer obra de arte, divina ou diabólica, traz uma marca indispensável – quero dizer, seu centro é simples, contudo, muito de sua realização pode ser complicada”. Qual é o método de Brown? Certa vez um norte-americano buscou descobri-lo, e foi encontrar o padre, na Espanha, repousando num castelo relativamente pequeno, cujo terreno abrigava um vinhedo escuro entremeado das manchas verdes de uma horta. No castelo e na vinha, Flambeau – “que outrora fora o mais notório criminoso da França e, mais tarde, um detetive muito particular na Inglaterra” – gozava de sua aposentadoria. Ao contrário, proclama Chesterton, dos norte-americanos, que não encontram energia suficiente para retirar-se do trabalho. O norte-americano levou algum tempo para arrancar o segredo do padre. Arrancar, diz o conto, “como se fosse um dente... sem dor e com uma grande habilidade dentro da técnica odontológica dos Estados Unidos”. A rigor, a operação não foi tão indolor assim. Para conseguir que o padre falasse, foi preciso que o visitante o insultasse, dizendo que ele só poderia ter tido o êxito que tivera em tantos casos se seu método fosse “mais ou menos esotérico”, e se ele soubesse das coisas sem precisar olhar para elas. Mas o padre se irritou de fato e decidiu falar, somente quando soube que a “Irmandade da Segunda Visão” vinha aceitando a teoria das Formas-Pensamento para explicar às platéias nos Estados Unidos como é que Brown conseguia alcançar os resultados que apresentava...
Seu método era muito simples e, por ser tão simples, o norte-americano se apavorou: “Eu planejava todos os crimes”, começou o padre, “com o máximo cuidado. Tinha pensado exatamente como aquilo tudo poderia ser feito, e em que estilo ou estado de espírito um homem poderia realmente fazê-lo. E então, quando eu estava bem certo de sentir-me exatamente como o assassino, eu, naturalmente, sabia quem ele era”. Como, desde a primeira frase, o norte-americano não acreditasse em nada do que ouvia e, gentilmente, tentasse insinuar que tudo eram palavras, Brown irritou-se: “...não estou dizendo isso como uma forma figurativa de falar. É isso o que acontece quando a gente tenta falar sobre coisas profundas... O que valem as palavras?... Se alguém tenta falar sobre uma verdade que é simplesmente moral, as pessoas sempre pensam que ela é simplesmente metafórica. Um homem de verdade, com duas pernas, disse-me uma vez: ‘Só acredito no Espírito Santo num sentido espiritual’. E eu, naturalmente, perguntei-lhe em que outro sentido ele poderia pensar. E foi então que ele pensou que eu estava querendo dizer que ele não precisava acreditar em coisa alguma a não ser na evolução ou no companheirismo étnico, ou qualquer outra tolice dessa espécie...”. E continuou descrevendo como chegava ao fim de suas investigações. Nessa passagem, que alguns poderão considerar longa demais, há muito da sabedoria do padre e muito do que Chesterton pensava do mundo moderno: “Eu quis dizer que realmente me via como autor daqueles crimes. Eu não matei realmente aquelas pessoas com meios materiais, mas isto não vem ao caso. Qualquer tijolo ou pedaço de ferro poderia tê-las liquidado por meios materiais. Eu quero dizer que pensei repetidas vezes na possibilidade de um homem poder ser assim, até que percebi que eu era, na realidade, muito parecido em tudo com ele, com exceção apenas no consentimento final para o ato. Isso foi-me uma vez sugerido por um amigo como uma espécie de exercício religioso. Creio que ele aprendeu isso com o Papa Leão XIII, que sempre foi um dos meus heróis”.
O método de Brown não se resume a essa incursão pelo Hades. Há um conto que se passa numa festa de caridade. Entre outros personagens, há um Senhor da Montanha, pretenso sábio hindu que, depois do desaparecimento de um fabuloso rubi, convida todos os presentes a concentrar-se, ficar em silêncio e ouvir um grito que vem do outro lado do mundo. Ele cria, com suas palavras, o ambiente: “Dia virá em que judeus e muçulmanos adorarão essa imagem porque ela não foi feita pelo homem. Prestem bastante atenção...”. E dirige os olhares de todos para o mesmo lugar onde o grande rubi havia estado até desaparecer – e a pedra lá estava. Todos se rendem aos poderes do Senhor da Montanha. Menos Brown, que havia convencido o ladrão a colocar a pedra no lugar. Depois, conversando com o detetive que nada descobrira, filosofa: “Logo que escutei a discussão deles lá na festa, vi que havia alguma coisa errada. Há gente que nega a importância das teorias e que acha práticas a lógica e a filosofia. Não acredite nisso. A razão tem sua origem em Deus, e quando as coisas não são razoáveis, então é porque há alguma coisa errada”.
Este é o alfa e o ômega do método do padre: se a razão nos foi dada por Deus, o que não é razoável é errado. Giussani trilha o mesmo caminho quando nos diz: “...o ‘razoável’ mostra-se a nós enquanto tal quando a postura do homem se manifesta com razões [eu diria “motivos”] adequadas. Se a razão é dar-se conta da realidade, tal relação cognitiva com o real deve desenvolver-se de modo razoável. E é razoável quando os passos para essa relação cognitiva são determinados por motivos adequados”.
O razoável aplica-se a diversos campos. Em primeiro lugar, àquilo que é socialmente convencional e não se afasta da moral. E também é preciso ter como princípio que não é razoável tudo aquilo que nega a Razão enquanto doação divina. Não é possível e não se poderá crer, dirá o padre certa feita, que Disraeli ao ser apresentado à Rainha Vitória estivesse fumando charuto e batesse na barriga de Sua Majestade – mas é possível a um homem voar. Seria estranho Chesterton, o polemista, recusar-se a levar seu raciocínio às últimas conseqüências. No mesmo conto em que há, convém lembrar, o Senhor da Montanha e sua sabedoria hindu, o padre continua explicando as coisas ao detetive: “Lady Mounteagle diz que todas as religiões são iguais. Será que são mesmo, com todos os diabos? Pois eu lhe digo que algumas delas são tão diferentes que o melhor crente pode ser um empedernido, ao passo que o pior de uma outra pode ser sensível”. E mais adiante, referindo-se ao Senhor da Montanha; “Eu já lhe disse que não gosto do poder espiritual porque a importância maior está na palavra poder. Não digo que o profeta fosse capaz de roubar a pedra. É quase certo que não o faria... Sua tentação especial não seria a de roubar jóias e sim de se mostrar capaz de fazer milagres que não lhe pertenciam, da mesma forma que as jóias”.
Brown pode duvidar de que as religiões sejam todas iguais porque Chesterton não acreditava que fossem. Em O homem eterno (“The everlasting man”) diz com toda a sem-cerimônia que o caracteriza enquanto polemista em defesa de sua fé católica: “O fim destas páginas é estabelecer a falsidade de certas vagas e vulgares afirmações. (...) Diz-se, freqüentemente, que todas as religiões são iguais, porque são rivais todos os fundadores de religiões; que todos lutam pela mesma coroa de estrelas. Isto é completamente falso. A pretensão a essa coroa é um caso único. Maomé não se proclamou de essência divina. Nem Confúcio, nem Platão, nem Marco Aurélio. Buda nunca disse que era Brama; Zoroastro, tampouco, afirmou que fosse Ormuz nem Arimán. Ninguém imagina Aristóteles proclamando-se pai dos deuses e dos homens, descendendo dos Céus, ainda que possamos imaginar algum demente imperador romano, como Calígula, cego por tais pretensões. Ninguém poderá conceber Shakespeare considerando-se literalmente divino, conquanto seja possível conceber algum norte-americano aloucado descobrindo essa divindade em forma de cifra nas obras de Shakespeare, ou melhor ainda, em suas próprias obras. É possível achar casos de seres humanos assumindo tais pretensões sobre-humanas. Casos que se encontram nos hospícios, freqüentemente. Mas não se conhece um só caso entre profetas e sábios fundadores de religiões. É bem certo que ninguém, ninguém supõe Jesus de Nazaré um pobre louco. Nenhum crítico moderno pensa que aquele que pronunciou o Sermão da Montanha fosse um imbecil. Não há ateu nem blasfemador que acredite que o autor da parábola do Filho Pródigo fosse um monstro com idéia fixa, como um ciclope com um só olho. Se Cristo foi simplesmente um caráter humano, foi, realmente, um caráter muito complicado e contraditório”.
Mas voltemos a Brown e ao conto em que há o Senhor da Montanha. A lição que o padre quer dar a todos nós é que os milagres não pertencem aos homens, mas a Deus. É por isso que é possível a um homem pular pela janela e sair voando. E Brown continua: “Ele, o profeta, se sente orgulhoso pelo fato de ter o que chama de poder espiritual. Só que aquilo que ele chama de espiritual não é a mesma coisa que aquilo que chamamos moral. Seu significado é, antes, mental. É o poder da mente sobre a matéria. É o mágico controlando os elementos. Acontece que não somos assim, mesmo quando não somos melhores e, até mesmo, quando somos piores. Nós que, pelo menos, nascemos de pais cristãos, que crescemos à sombra daquelas arcadas medievais, embora as deturpemos com todos aqueles demônios asiáticos, temos a ambição oposta e também a vergonha oposta”.
Chesterton pode falar dos “poderes espirituais” porque, antes de sua conversão ao catolicismo, na juventude, ele e o irmão andaram conversando com entidades que atendiam a seus convites à mesa. São de sua Autobiografia estas passagens: “Aquilo que eu posso chamar o meu período de loucura mansa coincide com uma altura em que andei à deriva, derivado ao ócio; um período em que me era impossível assentar em qualquer espécie de trabalho regular. Chafurdei por inúmeras coisas e algumas delas devem estar relacionadas com a psicologia do meu caso. Nem por sombras sugiro que elas tiveram o efeito de uma causa, muito menos o de uma desculpa, mas é já um fato constitutivo que, tendo eu baqueado tanto num período tão vago, tivesse acabado por errar pelo espiritismo, mesmo antes de me meter a ser um espírito. (...) Eu e meu irmão costumávamos fazer experiências com a mesa (...) mas éramos dos poucos, ao que suponho, que brincávamos por brincar. Contudo, não quero pôr de todo de parte a sugestão de alguns que diziam que aquilo que fazíamos era jogo com o fogo, e até com o fogo do inferno. (...) Vi o suficiente para poder assumir com absoluta certeza que alguma coisa acontece que não é natural, no sentido corrente da palavra, alguma coisa que não depende da vontade humana, normal e consciente. Se é produzida por algo subconsciente, mas ainda humano, ou por algum poder bom, mau ou indiferente, mas exterior à humanidade, não serei eu a tentar decidi-lo. A única coisa, que posso dizer, com verdade, a respeito daquele místico e invisível elemento, é que ele mente”. E eu acrescentaria: Chesterton diz que “mente” porque esse elemento invisível fala contra a razoabilidade daquilo que a Fé lhe ensinou.
Não alcançaremos toda a simplicidade do método nem compreenderemos a sabedoria de padre Brown se não aceitarmos a afirmação de que a razão tem sua origem em Deus, de que devemos procurar sempre o razoável. Também não compreenderemos a sabedoria do padre se não atentarmos para aquilo que está subjacente à confissão feita ao norte-americano: o mal existe e é possível a qualquer um de nós conhecê-lo. O que distingue Brown dos criminosos é que ele deixou que o mal penetrasse sua razão e que ela o avaliasse, mas não permitiu que entrasse em seu coração – ao mal não deu seu consentimento.
Quando tivermos a consciência de que o mal existe, poderemos alcançar não apenas a essência dos contos do padre Brown, mas também aquela de O homem que era quinta-feira. Ocorre que, a rigor, não é fácil descobrir o sentido que Chesterton quis emprestar à figura de Domingo, o chefe da conspiração anarquista, cuja voz era por demais parecida com a do misterioso chefe da Special Branch da Scotland Yard, que perseguia os anarquistas. Se atentarmos para as observações que Chesterton faz a respeito desse livro em sua Autobiografia, veremos como é difícil compreender, no sentido alemão do Verstehen, o que ele tem em mente, não apenas nesta fábula, mas em muitas se não todas as suas obras. Para mim, Domingo é o princípio e o fim das coisas. Para Chesterton ele era um “monstruoso papão de pantomima” que alguns sugeriram “e em certo sentido estavam certos, que ele era um símbolo blasfemo do Criador”. Segundo Chesterton, o livro deve ser lido a partir de seu subtítulo: “Um pesadelo”. Longe de ser um pesadelo, é, posso assegurar, uma pequena obra-prima de humor, que encobre, no entanto, uma visão da vida que repousa na certeza de que o pior pecado que se pode cometer é aquele que atenta contra o Espirito Santo: o orgulho intelectual. Tome-se esta passagem, em que o agente da Special Branch procura convencer o poeta, que é um anarquista, de que ele, policial, não está atrás de ladrões nem de assassinos, mas dos filósofos: “Dizemos que o criminoso mais perigoso hoje em dia é o filósofo moderno que não tem a menor idéia de lei. Comparado a ele, assaltantes e bígamos são homens essencialmente morais; meu coração está com eles. Eles aceitam o ideal básico do homem; apenas o vêem de maneira errada. Ladrões respeitam a propriedade. Eles apenas querem que a propriedade se torne sua propriedade para que possam mais perfeitamente respeitá-la. Mas os filósofos não gostam da propriedade enquanto propriedade; querem destruir a idéia da posse pessoal. Os bígamos respeitam o casamento; se não fosse assim, não passariam pela formalidade da bigamia, altamente cerimoniosa e até mesmo ritualística. Mas os filósofos desprezam o casamento enquanto casamento. Os assassinos respeitam a vida humana; eles apenas querem atingir a plenitude da vida humana neles próprios pelo sacrifício das que lhes parecem vidas menores. Mas os filósofos odeiam a vida, a sua como a de outras pessoas”.
Com certeza, a Special Branch perseguia os filósofos porque eles não têm a inocência das crianças. Chesterton sabe que as crianças podem ser aquelas retratadas por Henry James numa fascinante história, deprimente e também de horror, porque as crianças em torno das quais gira toda a trama são a encarnação do mal. Para ele, porém, durante toda a sua vida, as crianças têm a pureza que foi sua, aos cinco ou seis anos de idade, quando pela primeira vez assistiu a uma representação de teatro de fantoches. Na cena, o príncipe buscava libertar a princesa. Para Chesterton criança, era um mundo todo novo, de sonho, poesia e pureza. É desse mundo que ele se recordará, anos depois, muitos anos depois, na Polônia: “E então eu vi que a rua estava apinhada de gente, que todos me miravam e que todos estavam ajoelhados no chão. E tive a impressão de que havia alguém atrás de mim ou de que um pássaro exótico planava sobre minha cabeça. E, tendo-me voltado, vi, ao centro da abóbada, grandes janelas abertas sobre uma sala cheia de cores e de ouro; e, ao fundo, um quadro; mas certas partes do quadro moviam-se como num teatro de bonecos, e despertavam em mim a estranha memória, que se desdobrava como num sonho, daquela ponte, daquela peça no teatro de bonecos de minha infância; e então eu percebi que o que eu ouvia e o que eu via brilhar naquele grupo em movimento era o antiquíssimo esplendor da Missa”. A cena do príncipe, levando a chave de ouro para salvar a princesa – “estarei pronto a lutar pela certeza de que era linda” –, brilha na sua “memória como a visão instantânea de qualquer inconcebível paraíso. E prevejo que continuarei a lembrar-me dela, mesmo quando todas as lembranças abandonarem meu espírito”. Ele confessa: “A fascinação das crianças reside nisto: em cada uma delas todas as coisas são refeitas, e o universo é sempre de novo colocado em tela de juízo. (...) Em cada uma dessas esferas [as cabeças das crianças que vemos nas ruas] há um novo sistema de estrelas, novo relvado, novas cidades, um novo mar”.
Talvez avance demais na interpretação da inocência do padre Brown – título de outro livro de contos – se disser que ele vê o mundo com olhos de criança: olhos inocentes, mas capazes de reconhecer de onde vem o mal. Ou nenhum de nós não se recorda do gesto que, crianças, fizemos para nos aproximar de alguém, ou para rejeitar o carinho que nos era oferecido e que sentíamos que era falso? A sobrinha do padre dá-nos um exemplo disso: “Pensei que queria [casar-me com ele]. Pelo menos pensava que queria, mas acabo de passar por um choque. Eu ouvi quando ele riu”. O tio tentou tranqüilizar a sobrinha, que lhe retrucou: “Mas o senhor não compreende, tio. Ele não estava olhando para os quadros. Olhava para o teto, embora seus olhos parecessem estar voltados para dentro; e ele riu de uma maneira que me gelou o sangue nas veias”. Ao fim, quando se descobre que o noivo – que felizmente não era mais – não passava de um assassino que tinha matado o pai para herdar, Brown medita: “Há ocasiões em que é um prazer dizer a verdade até mesmo no meio do inferno. E, acima de tudo, de fazer isso de uma forma tal que engane todo mundo. É por isso que ele gostava de se apresentar como sendo outra pessoa que o acusava de ser tão ruim e perverso como [de fato] era. E foi por isso que a minha sobrinha o viu rindo sozinho lá naquela galeria de quadros. É a isso que eu chamo de ironia infernal”.
Talvez seja um paradoxo, desses de Mr. Pound com que Chesterton nos deliciava, afirmar que Brown sabia que o mal existia porque via o mundo com os olhos inocentes de criança. Além, evidentemente, de acreditar no mal porque era um sacerdote católico. Como católico – não importa se padre ou não – sabia que o mal está presente em cada um de nós porque houve a Queda. É por isso que Brown não cuida de entregar os criminosos à polícia. São muitos os contos em que ele simplesmente revela aos ouvintes aturdidos quem é o criminoso, que já partiu. Ele não está preocupado com a justiça humana. Não há, nos contos do padre detetive, nenhuma preocupação em arrolar provas que permitam um julgamento e uma condenação. Para ele, a condenação é moral – e o próprio criminoso sabe disso, tanto assim que foge, carregando com ele a vergonha do mal feito.
A visão que Chesterton tem da Queda é resumida num trecho de The Thing: Why I Am a Catholic. Antes de citar Chesterton, convém interpretá-lo. A expulsão do Paraíso só poderá ser compreendida, no quadro das verdades fundamentais da Fé, se for vista com os olhos da Razão. Dessa perspectiva, a Razão coloca o fato contra o pano de fundo da Vontade, o que nos leva a concluir que, desde o Éden, é o livre arbítrio, e não a predestinação, o que guia as ações humanas. Se afastarmos a noção do livre arbítrio só nos restará acreditar na predestinação do calvinismo ou no mactub islâmico, ou cair na desesperança de Ivan Karamazov, que não compreendia como Deus permite que as crianças sofram. Traduzo esta passagem de Chesterton: “A Queda é uma visão de vida. Não é apenas o único foco de luz, mas também a única visão de vida que é encorajadora. Ela sustenta, contra as únicas filosofias alternativas, aquelas do Budista ou do Pessimista ou do Prometeico, que nós usamos mal a boa palavra, e não que fomos meramente levados a uma armadilha por obra de uma má palavra. Ela refere o mal ao mau uso da vontade, e assim declara que ele pode ser corrigido pelo correto uso da vontade. Qualquer outra crença, exceto essa, é de certa forma uma rendição ao destino”. E eu acrescentaria, para tornar mais claro o pensamento, uma rendição ao “assim estava escrito”.
Creio necessário explicitar a visão que Chesterton tem do livre arbítrio. Na Ortodoxia, ele escreve: “Um poeta sente-se tão separado do seu poema que fala dele como duma pequena coisa que ‘deitou fora’. Mesmo ao divulgá-lo, separou-se dele. (...) A mulher perde a criança quando a dá à luz. Toda criação é separação. O nascimento é uma separação tão solene como a morte”.
Ele continua: “O primeiro princípio filosófico do Cristianismo foi que este divórcio no ato divino de criar (exatamente como acontece com o poeta que é separado do seu poema ou com a mãe que é separada do filho recém-nascido) era a verdadeira descrição do ato pelo qual a energia absoluta produziu o mundo. De acordo com a maioria dos filósofos, Deus, ao fazer o mundo, escravizou-o. De acordo com o Cristianismo, Deus, ao fazer o mundo, libertou-o. Deus escreveu não tanto um poema, como antes um drama: um drama que planeou como perfeito, mas cujo desempenho foi confiado a atores e a diretores de cena humanos, os quais, desde então, fizeram de tal drama uma grande baralhada. Mais tarde discutirei a verdade deste teorema. Por agora, limitar-me-ei a mostrar como desapareceu, com extraordinária suavidade, o dilema de que nos temos ocupado neste capítulo [a distinção entre o otimista e o pessimista]. O homem podia agora ser feliz ou ser um revoltado, mas sem se degradar a ponto de se tornar um pessimista ou um otimista. Com este sistema poder-se-iam combater todas as forças da existência, mas sem se abandonar o estandarte da mesma existência. A humanidade podia estar em paz com o Universo, embora estivesse em guerra com o mundo”.
Não é possível falar de Chesterton sem referir-se a sua conversão. Ele diz com toda a candura: “Quando me perguntam, ou simplesmente se pergunta: ‘Por que é que entrou para a Igreja Romana?’, a primeira resposta que me ocorre, a resposta essencial, ainda que um pouco elíptica ainda, é esta: ‘Para me libertar de meus pecados’. Porque não há outro sistema religioso que ensine as pessoas (se professam realmente) a libertarem-se dos seus pecados. E encontro a confirmação deste fato na lógica, que a muitos parece estarrecer, pela qual a Igreja deduz que o pecado de uma pessoa, que se confessa e seriamente se arrepende, é realmente apagado. (...) E surpreendeu-me minha própria surpresa: que a Igreja Católica conhecesse, em matéria de bem, bem mais do que eu, não era difícil de acreditar; mas que ela soubesse mais do que eu em matéria de mal, mal podia crer que fosse possível”.
Com isso chegamos, ainda que de passagem, à Psicanálise. O importante não é Freud; o importante é reconhecer o que significa o Sacramento da Confissão: “Enfim, eu não queria passar por desconhecer o fato de que o mundo moderno, através de alguns de seus grupos intelectuais, está agora pronto a assegurar as vantagens da Confissão. Mas nenhum desses grupos parece, no entanto, ligar a mais pequena importância à absolvição”.
Espero não tê-los cansado com essa exposição. E espero que desse amontoado de citações e de reflexões sem plano tenha ficado a lição maior que Chesterton nos legou, no Heretics: “É erro grave pensar que a ausência de convicções definidas dá ao espírito liberdade e agilidade. Um homem que crê tem o espírito sempre vivo e apto, porque está na plena posse de suas armas”.
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