COMUNICAÇÃO EM REABILITAÇÃO

Linguagem e Subjetividade

COMUNICAÇÃO EM REABILITAÇÃO

09/2018

COMUNICAÇÃO EM REABILITAÇÃO

* Gilberto Ferlin Filho

Há alguns dias, no consultório, ouvi uma frase, frequentemente repetida, quando a relação médico-paciente deixa ambos à vontade e há disponibilidade de tempo para além das avaliações técnicas. A idade do paciente aumenta as chances de o enunciador ter conhecido a figura em questão: “Doutor, como faz falta um médico de família! Sabe, aquele que sabia de tudo e cuidava de todos lá em casa...”

A primeira impressão pode ser de retrocesso. Como seria possível, uma só pessoa saber sobre a saúde de forma a trazer segurança e eficácia a diagnósticos e tratamentos, em um momento em que, todas as áreas do conhecimento se expandem de maneira exponencial em períodos de tempo relativamente curtos? A possibilidade de que exista ou mesmo venha a existir, um algoritmo que torne isso viável, diante da mais recente tecnologia de inteligência artificial, é pequena. A interação humana transcende os cinco sentidos que as ciências da saúde conhecem.

A ideia central daquela frase remete à busca de alguém que domine totalmente o assunto - o ser humano em suas dimensões. Nossa espécie, em outros tempos, certamente se deparou com desafios semelhantes que, por terem sido superados, são avaliados hoje, como de proporções menores. Todos já ouvimos, por exemplo, relatos de povos que uniram forças para caçar enormes animais suprindo a necessidade básica de se alimentar, subsistindo em ambientes absolutamente inóspitos. Pode-se dizer que essa organização, para a época, foi revolucionária e exigiu uma série de pequenos avanços, entre os quais, o desenvolvimento e uso de ferramentas e, em especial, a emergência da comunicação, do planejamento e do trabalho conjunto, quando isso era, ainda, muito precário.

Entre outras atividades inerentes à minha especialidade médica, atuo em reabilitação. Quando comecei minha carreira profissional, não pensei em exercer atividades nesse campo. Entretanto, com os estudos e avanços das ciências da saúde, alterações orgânicas passaram a ser evidenciadas antes do nascimento. Em outros tempos, algumas dessas alterações invariavelmente levariam à morte, mas agora tomam outros rumos. Adiamos o êxito letal fazendo crescer a expectativa de vida das pessoas. Diagnosticamos de maneira precisa e, por vezes, precocemente, doenças que antes eram desapercebidas, mas traziam comorbidades importantes.

Doenças agudas tem desfechos absolutamente diversos do que ocorria há poucos anos. Doenças crônicas passaram a ser diagnosticadas antes de sua plena manifestação e, por meio de intervenções, são agora controladas e tratadas. O mesmo se dá com alterações mentais, incompreendidas em outro tempo.

Por outro lado, não conseguimos frear o envelhecimento e, com ele, pode surgir alguma sequela. Mesmo com o arsenal diagnostico e terapêutico atual, muitas vezes, não conseguimos livrar o recém-nascido de alguma injuria. Somos assim convidados a pensar de maneira concreta em nossa vulnerabilidade e, como, de repente, podemos vir a ser uma pessoa deficiente.

Verifica-se um aumento, sem precedentes, de deficiências de todas as naturezas. Surge uma área de trabalho - a reabilitação - que demanda estudo e raciocínio dinâmico, e se apresenta com uma infinidade de possíveis combinações que interagem e determinam funcionalidades diferentes, para indivíduos com sequelas orgânicas semelhantes. Chama a atenção, e passa a ser objeto de estudo, as interferências do ambiente, determinando rumos distintos para cada caso. Não raro o meio em que o paciente se encontra deve ser adaptado às condições impostas. No final desse esforço encontra-se a pessoa, o que há de transcendente no ser humano e que está além da fisiologia e dos cinco sentidos e suas associações. Reinaugura-se, nessa perspectiva, a reabilitação, acompanhando a evolução de conhecimentos e transformando seus objetivos fundamentais.

Apresenta-se um novo panorama, formado por um sujeito que, pela condição decorrente das diversas dificuldades que lhe são impostas, dificilmente será compreendido completamente por um único profissional, por mais preparado e experiente que esse seja. O deficiente encontra, então, um momento de fragilidade na pluralidade de profundos conhecedores de parte de seus problemas. A tarefa de unificar e organizar exames, avaliações, diagnósticos, terapias, medicações, entre outros, volta a ser uma arte. Arte essa que era desempenhada com maestria pelo médico de família, mas que diante de tudo que se apresenta à reabilitação, não seria mais viável.

Podemos pensar que a equipe de reabilitação multiprofissional guarda muitas semelhanças com a figura do médico de família e, por isso, a lembrança do mesmo reaparece repetidas vezes. Não qualquer equipe, é verdade. Mas a equipe em que cada membro, ciente de suas responsabilidades para com o doente, comunica-se e interage com seus colegas, multiplicando experiências e conhecimentos, acompanhando as evoluções do ser cuidado, singular e, a partir de um debate constante, transmitindo, em uníssono, à pessoa enferma e sua família, condutas e orientações para uma reabilitação mais eficiente. Dessa forma, será possível que o paciente, não apenas sobreviva à extenuante rotina terapêutica, mas retome suas atividades, adaptado e/ou reabilitado.

Essa tendência de atuar em equipe pode ser observada também na saúde pública, trazendo para os profissionais um novo desafio: o diálogo interdisciplinar de forma cooperativa, aberto à mudança de paradigmas e propostas, em que cada um tem uma clara noção da aplicabilidade e dos limites de seu conhecimento. Esse diálogo objetivo e direto entre os especialistas mostra-se um caminho promissor para atingir melhores resultados na terapia de cada paciente. Portanto, o sujeito principal do processo de reabilitação é, sempre que possível, o próprio paciente. De maneira ativa o reabilitando, durante sua melhora, irá retroalimentando seu processo de reabilitação. Outro protagonista da reabilitação é a família do paciente. Essa não deve ser esquecida e, quando não ativa, deve ser solicitada a participar e potencializar o processo de reabilitação.

Com o olhar mais atento, não é raro perceber que os resultados da reabilitação de um familiar, amigo, colega ou conhecido, produz mudanças pessoais, talvez inesperadas, em todos os envolvidos no processo. Talvez futuros estudos consigam explicar isso, mas, por hora, essa constatação ainda se mostra puramente empírica.

 

* Médico pela Universidade de Santo Amaro, São Paulo.
Otorrinolaringologista pela Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial – Associação Medica Brasileira.
Mestrando em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica – São Paulo
Grupo de Estudo: Linguagem e Subjetividade
E-mailgbferlin@pucsp.br

 

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