A implicação da família na clínica dos desvios fonológicos.
10/2021
A implicação da família na clínica dos desvios fonológicos.
* Carlos Eduardo Borges Dias
Na terapia dos desvios fonológicos, a experiência clínica permite constatar o fenômeno da autocorreção no processo que se inicia com as primeiras produções do(s) fonema(s)-alvo e que se completa com sua estabilização em situações cotidianas. Como explicam Fávero et al. (1999), as autocorreções fonético-fonológicas podem ser autoiniciadas ou heteroiniciadas, ou seja, elas podem ser autocorreções que o locutor faz de seu próprio enunciado ou autocorreções que o locutor faz a partir do enunciado de um interlocutor, como nos dados a seguir:
“M. o dominó era de letrinhas, filha? | “Th. Two what? |
L. [ε de pI’ka] ... [de pe’ka] ... | E. two [dit]. |
[de pes’ka] ... [de pe:s’ka] ... [de pes’ka:]”¹. | Th. two [dit]? E. feet”². |
Apesar de ainda não haver estudos exclusivamente dedicados a esse fenômeno, cada vez mais a literatura clínica tem ressaltado a importância de incentivá-lo, especialmente as abordagens colaborativas nas quais a família é convocada a complementar a intervenção em casa. Com efeito, para conceber a autocorreção, essa literatura tem se pautado essencialmente em teorias psicolinguísticas que a consideram como uma manifestação da emergência da “consciência metalinguística”. Na contracorrente dessa perspectiva predominante, alegamos que, por essa via, tal literatura não pode responder pelo efeito de alteridade implícito na suposição de que a autocorreção heteroiniciada é um determinante para o advento da autocorreção autoiniciada na fala da criança.
Ancorando-nos em estudos linguísticos e na psicanálise freudo-lacaniana, propomos uma concepção alternativa a respeito desse advento através do desenvolvimento de uma reflexão sobre as relações que podem ser estabelecidas entre a criança e a família ao longo da terapia.
Tal reflexão tem sido pautada, por um lado, nas pesquisas de Lemos (2002), para quem as autocorreções surgiriam em consequência do aparecimento de uma nova posição que a criança assume diante da Língua e do Outro, distinta daquela posição caracterizada por uma espécie de surdez no que concerne à diferença entre a sua própria fala e a fala do Outro. Essa nova posição supõe “o reconhecimento pela criança da discrepância entre o que diz e o que deve dizer” (p. 62). Muito além de um mero domínio de regras da língua, para a autora ela implica em um processo de subjetivação através do qual, para a criança, a “escuta de sua própria fala, assim como a escuta da fala do outro em sua diferença, adviriam, então, não de um movimento da língua sobre si mesma (de sua reflexividade), mas do grande Outro” (p. 64).
Por outro lado, retomamos a hipótese levantada em um trabalho anterior (DIAS, 2015) de que as autocorreções seriam o resultado de uma internalização da coerção social que se traduz na formação de um ideal a partir do qual o falante pode julgar suas próprias formações linguageiras. A partir dela, sustentamos que, na psicogênese desse fenômeno na fala da criança, tal tradução depende da demanda do Outro. Baseados na reflexão de Lacan (1963/2005, p. 327-9) sobre esse conceito, argumentamos, no que diz respeito ao Outro, que uma demanda pode ser manifesta por meio das formas heteroiniciadas, e, no que diz respeito à criança, que o surgimento dessa “escuta de sua própria fala” pode ser concebido como um resultado de sua busca por satisfazer a essa demanda.
A experiencia clínica mostra, no entanto, que tal demanda pode nem mesmo existir no ambiente familiar, já que, muitas vezes, a queixa de um problema na fala só surge a partir da entrada da criança na escola e principalmente através dos professores. Além disso, pesquisas como as de Keske-Soares et al. (2016) têm reconhecido no discurso parental uma importante influência sobre os desvios fonológicos, a ponto de levantarem a hipótese de que ele pode refletir um desejo materno de manter a criança em uma posição infantilizada. Daí a importância de uma abordagem colaborativa que engaje a família na terapia.
Para isso, faz-se necessário recorrer não somente a uma formação abarcando as questões fonológicas envolvidas em um dado desvio: é a partir da instrução especializada a respeito de atividades lúdicas envolvendo as propriedades fonológicas em jogo que a família pode contribuir com a terapia para uma mudança de posição da criança em relação a sua própria fala.
A demanda subjacente a essas atividades permite assim que a família assuma o papel de quem favorece a identificação da criança com uma nova imagem de falante (apresentada como um ideal para o eu por supostamente satisfazer o desejo do Outro), a partir da qual ela pode julgar sua própria fala – condição elementar para o advento da autocorreção autoiniciada.
NOTAS:
1. Dado apresentado por Miranda & Cunha (2013).
2. Dado apresentado por Gardner (1998).
REFERÊNCIAS:
DIAS. C. Est-ética da fala: o equívoco em julgamento. Tese de doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP), 2015. FÁVERO, L.L. et al. A correção do texto falado: tipos, funções e marcas. In: NEVES, M.H. (org.). Gramática do português falado, vol. VII. Campinas/SP: Editora da Unicamp,1999.
GARDNER, H. Social and cognitive competencies in learning: which is which? In: Hutchby, L. & Ellis, S. (eds), Children and Social Competence, London: Falmer, 1998.
KESKE-SOARES, M. et al. Implicações do discurso parental no desvio fonológico. Estudos de Psicologia, vol.33, 2016.
LACAN, J. (1963) O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LEMOS, C. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 42, 2002.
MIRANDA, A. & CUNHA, A. Indícios de reestruturação do conhecimento fonológico da criança em dados de reparo na escrita inicial. Letras de Hoje, v. 48, n.3, 2013.
* Fonoaudiólogo, mestre e doutor em linguística pela UNICAMP, pós-doutorando em Comunicação Humana e Saúde pela PUC-SP.
E-mail: borgesdias.edu@gmail.com
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