A importância de um espaço de escuta aos pais de crianças autistas

Linguagem e Subjetividade

A importância de um espaço de escuta aos pais de crianças autistas

04/2022

A importância de um espaço de escuta aos pais de crianças autistas


* Letícia Batista Gouveia

 

O planejamento de um filho é efeito do desejo dos pais e um discurso social de cada sujeito que, ao longo da vida, idealizam como será a criança, seu futuro nome e como ocorrerá o seu desenvolvimento de forma global. Além disso, os pais transmitem ao seu bebê por meio dos cuidados seus desejos e marcas primordiais que dizem respeito a maneira como foram cuidados e viveram suas infâncias. Como aponta Freud (1969), o bebê se encontra no desejo da mãe e é deslocado como um objeto imaginário de amor, que a torna completa e no qual reside toda a perfeição. A mãe, e até mesmo o pai, revive no bebê durante todo o processo de gestação e após a gestação seu próprio narcisismo, ou seja, a supervalorização de si próprio, o que significa dizer que os pais amam a si através desse filho tão esperado e idealizado (FERNANDES et. al., 2020).

Os pais sonham com uma criança perfeita e saudável pois encontram no filho a possibilidade de realizar seus sonhos e ideais, e quando o filho tão sonhado chega e ao decorrer do seu desenvolvimento possui alguma limitação, suas expectativas se fragilizam, já que a criança perfeita que lhes proporcionaria alegrias não nasceu e ficam enlutados pela “perda” do filho que não existirá (JERUSALINSKY, 2007).

Os pais de crianças com autismo tendem a passar por mais de um processo de luto durante e após o diagnóstico, visto que o autismo não apresenta traços detectados durante a gestação, nem nos primeiros dias de vida; assim como os sinais e sintomas serão evidenciados ao longo do desenvolvimento, desde os primeiros meses, no entanto ficam mais evidentes por volta do segundo ano de vida da criança. Enfrentar essa nova e inesperada realidade acarreta em sofrimento, frustrações, medo e luto pelo filho tão sonhado. Por isso, em particular, exercer a papel de pais se torna uma experiência complexa (SMEHA & CEZAR, 2011; SILVA et. al., 2018). O relato de Takeda (2015) após o diagnóstico de seu filho expressa:

“[...] Fui direto para a casa da minha mãe levar a notícia. Cheguei, olhei e ela já me disse: “ele é autista, não é?”. Neste momento eu “desmontei” e me recordo muito bem de dizer: “mãe, esse é o dia mais triste da minha vida”
[...] Depois que você é mãe, além das delícias de o ser, também passamos a sofrer o desgosto de sentir extrema tristeza quando o assunto é negativamente relacionado aos nossos rebentos”.

Tendo em vista que os déficits de fala, linguagem e interação social são de maior impacto, influenciando diretamente na posição da criança autista como sujeito no ambiente familiar, muitos pais relatam que como o seu filho não fala com eles, eles param de falar com a criança, param de interagir e narrar o que acontece no dia a dia e começam a modificar as posições dentro do seio familiar, deixando de conversar e interagir pela falta de reciprocidade. Por isso, durante o tratamento além do trabalho com a criança, deve-se oferecer espaço para que as famílias possam relatar o que vivenciam, especialmente na entrevista inicial, onde os pais demonstram-se inseguros em partilhar toda a vivência de sua rotina familiar e preocupações que giram em torno do diagnóstico já realizado ou que ainda esteja em processo de investigação. Além da participação da família durante as sessões, especialmente das crianças em fase inicial do desenvolvimento, ser de suma importância para que em conjunto com os terapeutas os pais possam compreender as produções de seu filho, além de ajuda-los a ver que naquela criança existem potencialidades e um vestígio de sujeito que precisa desabrochar (BATISTELLI et. al., 2014)

O papel do terapeuta vai muito além de oferecer orientações aos pais, dizendo: “faça isso, não faça isso”, a posição do profissional da saúde é atuar na subjetividade familiar, no campo simbólico que os pais e seu tão sonhado filho (agora o bebê real que está à sua frente) ocupam e auxiliar na conexão, no olhar para aquela criança como ser constituinte do núcleo familiar e saber que as mudanças a partir da intervenção e do que disser para os pais não acontecerão repentinamente, o processo de intervenção é longo e árduo e, ao se debruçar a atuar com estas famílias, o terapeuta deve direcionar seu olhar as conexões e vínculos, tanto com o paciente quanto com as mães, pais e demais familiares.

 

* Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Humana e Saúde.

 


 

Referências:

BATISTELLI, F. M. V.; AMORIM, M. L. G. (Org.). (2014). Atendimento psicanalítico do autismo. São Paulo: Zagodoni.

FERNANDES, C. S.; TOMAZELLI, J. e GIRIANELLI, V. R. Diagnóstico de autismo no século XXI: evolução dos domínios nas categorizações nosológicas. Psicologia USP [online]. 2020, v. 31. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-6564e200027

FREUD, S. (1917 [1915]). Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas. v. 14. Rio de Janeiro: imago Editora, 1969.

JERUSALINSKY, A. Psicanálise e desenvolvimento infantil (4a ed.). Porto Alegre: Artes e Ofícios. 2007.

SILVA, A.A., SHINEIDR, E., SANTOS, H.H. e SILVA, J.C. O impacto que ocorre nas famílias após o diagnóstico do transtorno do espectro autista na criança: o luto pelo filho idealizado. Revista Dissertar. 2018. DOI: https://doi.org/10.24119/16760867ed1145

SMEHA, L. N. e Cezar, P. K. A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo. 2011, v. 16, n. 1, pp. 43-50. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pe/a/QypM8WrpBcGX9LnwfvgqWpK/?lang=pt#ModalArti…. Acesso em: 03 abr. 2022.

TAKEDA, T. Autismo: o luto da família. 2015. Disponível em: https://opopular.com.br/noticias/ludovica/blogs/viva-a-diferen%C3%A7a/v…. Acesso em: 05 abr. 2022.

 

 

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