Escutar os pais para intervir nas alterações de linguagem de crianças atendidas no sistema único de saúde
07/2018
Escutar os pais para intervir nas alterações de linguagem de crianças atendidas no sistema único de saúde
* Patrícia Rocha dos Santos
Uma das grandes demandas de encaminhamento fonoaudiológico ao SUS, observada ao longo de 10 anos, tem sido o de crianças com “dificuldade de fala”.
Essa “dificuldade”, relatada pelo cuidador, não se sustentava na maioria das avaliações fonoaudiológicas, quando, frente às crianças, o que se observava eram marcas do processo de desenvolvimento da linguagem ou respostas destas às interpelações dos adultos, como no caso em que o pai/mãe trata a criança como mais infantil e, esta responde com uma fala para aquém de sua potencialidade ou, não vê sentido em expressar-se verbalmente. Além dessas queixas, algumas crianças apresentavam a musculatura oral flácida devido à um uso ineficaz da mastigação, pela utilização de mamadeira, ou de ingesta de alimentos mais macios e picados em tamanhos pequenos, interferindo no desenvolvimento da mastigação e, por conseguinte, na musculatura peri-oral, importante para o desenvolvimento da fala. O conjunto de fatores mencionados, que interferem diretamente na fala das crianças, relaciona-se mais diretamente aos pais do que as crianças propriamente ditas.
Assim sendo, a grande questão sempre foi como lidar com este tipo de alteração e como, para além da terapia fonoaudiológica, inserir os pais como co-participantes do processo, evitando a fracassada “orientação”.
Nessa tentativa de colocar os familiares em contato com algumas dessas questões, propôs-se um Grupo de Pais para acolher e entender a sua relação com seus filhos e a linguagem.
Esta proposta transformou-se em uma pesquisa de Mestrado, intitulada “Dispositivo de cuidado no Núcleo de Apoio à Saúde da Família: experimentação com um grupo de pais”.
O Grupo de Pais se tornou uma experiência de intervenção breve com pais de pacientes em avaliação fonoaudiológica na Atenção Básica à Saúde, mais especificamente em um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) do município de Mauá/SP. O pressuposto da pesquisa com os pais, como já mencionado, é de que a atuação fonoaudiológica com crianças não deve se dirigir exclusivamente a elas, devendo englobar também as famílias, o que inclui a criança em sua singularidade, os pais e a dinâmica familiar.
O desenho da proposta foi intervir, por sete encontros presenciais, em um grupo aberto de pais de crianças com queixas de alteração de linguagem, trazidos pela equipe NASF. Ao todo participaram cerca de 10 pais (incluindo 3 casais, pois o convite era extensivo a ambos). O conteúdo dos encontros foi gravado em áudio e as falas e apontamentos foram posteriormente transcritos e interpretados por meio de pontuações terapêuticas e análise de trechos dos discursos dos pais relativos às situações emblemáticas vivenciadas no grupo. Os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos foram rigorosamente respeitados.
O objetivo foi identificar percepções e modos de relações dos pais com seus filhos, indiciando afetos em jogo e acompanhando sua elaboração no que concerne à identificação de problemáticas familiares e à colaboração com os cuidados à saúde, sobretudo naquilo que se relaciona às alterações de linguagem que geraram a queixa e a procura pelo serviço de saúde.
Muitos movimentos interessantes aconteceram durante os encontros; pode-se citar uma mãe que concluiu que possivelmente sua filha de 3 anos, descrita como muito agitada, com “atraso de fala” e “nervosa”, era desse modo pelo efeito dos gritos que ela, mãe, dava ao se dirigir a criança. Em outro movimento, uma mãe fala de seu ódio com relação ao sistema de saúde, a escola do filho, as dificuldades de sua relação com o esposo, e conclui que houve piora em sua qualidade de vida quando mudou-se para a cidade da pesquisa. Após a participação no grupo, essa mãe relata a equipe de saúde da família que está voltando para sua cidade de origem. Efeito da intervenção? Com certeza, efeito da circulação dos dizeres dos integrantes e da escuta da mãe a si própria.
Desde modo, observou-se que o experimento grupal constituiu um “espaço/tempo” terapêutico que, ainda que em escala e profundidade limitadas, acolheu inquietações e sofrimentos dos pais presentes. Foi terapêutico por propiciar relações de cuidado, tratar e elaborar vínculos e oferecer escuta clínica. Tal escuta ainda teve a característica de não se centrar na especificidade de um núcleo disciplinar (o da Fonoaudiologia), embora tenha partido e se valido dele.
A experiência grupal trouxe a evidência de que conhecer e problematizar a percepção parental sobre as alterações fonoaudiológicas de seus filhos é útil à compreensão dos quadros clínicos dessas crianças, bem como pode contribuir na constituição e na qualidade do cuidado ofertado tanto na Atenção Básica à Saúde, quanto em qualquer outro contexto terapêutico com crianças.
REFERÊNCIAS
ARAUJO, Manuela Luchesi Brazil.; FREIRE, Regina Maria; Ayres. DE Camargo. Atendimento Fonológico em grupo. Revista CEFAC, v. 13, n. 2, abr. 2011, pp. 362–368.
DI FANTI, Maria da Glória Corrêa. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. Veredas - Rev. Est. Ling, Juiz de Fora, v.7, n.1 e n.2, jan./dez. 2003, p.95-111.
RAHAL, Carina. Atraso de Linguagem: do olhar a criança para escutar a mãe. Dissertação (Mestrado no Programa de Pós-graduação em Fonoaudiologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2008.
* Graduada em Fonoaudiologia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Aprimoramento em Neuro Geriatria pelo HCFMUSP. Mestre em Fonoaudiologia pela PUCSP. Fonoaudióloga na Secretaria de Saúde de Mauá.
E-mail: patyfonounicamp@yahoo.com.br
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