A voz não se confunde com o som
12/2013
A voz não se confunde com o som
Sofia Nery Lieber*
A diferença entre o ser humano e os outros animais se baseia, entre outros fatores, no mundo simbólico do Homem, constituído e acessado pela linguagem. O bebê humano, quando comparado aos filhotes de outras espécies, é muito imaturo ao nascer: não enxerga bem, não tem coordenação motora para deslocar-se de um lugar a outro e ainda não fala. Consequentemente, ele precisará dos cuidados de um adulto, um semelhante, nos primeiros anos de sua vida.
Em relação à linguagem, a criança é capturada/assujeitada porque está mergulhada em uma cultura/ambiente linguístico antes do seu nascimento e irá sofrer determinações desse sistema. A criança ingressará nessa ordem simbólica – a linguagem - a partir de sua relação com os adultos que dela se ocupam. Esses adultos irão falar com ela, oferecendo significantes que dterminarão sua subjetividade.
Aconteceria o mesmo com os surdos que, sem audição, também precisam do Outro para serem introduzidos ao simbólico da linguagem?
Procedendo analogamente ao que a Psicanálise propõe com a disjunção entre visão e olhar e, levando em consideração que existem línguas que não são orais-auditivas e que, mesmo assim, elas não deixam de ser uma língua porque têm uma gramática própria, expressam conceitos abstratos como s línguas orais e seus elementos icônicos são convencionais e sistematizados, arrisco a responder que sim, uma vez que voz não se confunde com som.
O som e, consequentemente o ato de ouvir, são uma função do órgão e a voz seria o lugar onde se inscreve o desejo que, indo além da função do órgão, carrega a dimensão do inaudito (Catão, 2009). Podemos pensar que a voz transcende o som porque mesmo nas diferentes línguas de sinais, compostas por gestos e expressões faciais e ausência de oralidade, há surpresas e enigmas nas frases das pessoas, há coisas que a voz não diz e o sujeito tem que interpretar a “voz gesticulada” do outro. Isso mostra que, igualmente ao que ocorre nas línguas orais-auditivas, a voz também impulsiona a enunciação, incitando os sujeitos da interação a significar o real.
Assim como o olhar e o som para os ouvintes, a voz sem som e o olhar para os surdos, propiciariam uma antecipação imaginária do bebê como falante de uma língua de sinais, portanto, como sujeito singular.
Talvez as expressões faciais e gestos que também dizem do sujeito e do mundo, tomados como espelho, possam falar para a e da criança surda que, assim, pode se ver e ouvir, neles encontrando a voz do Outro, ou seja, sendo capturada/assujeitada pelo sistema simbólico da linguagem humana.
Segundo essa concepção, não é a surdez, a impossibilidade de ouvir sons, que pode comprometer o processo de subjetivação de uma pessoa surda e sim a falta de acesso à linguagem/mundo simbólico e à voz de um outro que o reconheça como falante e interaja com ele. É a voz e a linguagem do Outro e não o som que subjetivam o ser humano, sendo ele também o resultado das vozes da sociedade em que ele foi socializado, já que é produto de diferentes discursos que o atravessam. Se existir diálogo e interação entre aquele que fala e aquele que escuta, mesmo não havendo a sonoridade de uma das partes, um corpo falante atravessado/submetido às leis da linguagem será reconhecido, o que abre espaço para a ocorrência de mudanças subjetivas que acontecem ao longo da vida do ser humano, pela experiência e interação com as outras pessoas.
Referências Bibliográficas:
Catão, I. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. Instituto Langage. São Paulo, 2009.
*Sofia Nery Lieber é Psicóloga e Psicanalista, mestranda em Fonoaudiologia pela Puc-sp, na linha de pesquisa de Linguagem e Subjetividade.
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