Que lugar para os pais na clínica com crianças?
01/2022
Que lugar para os pais na clínica com crianças?
* Bárbara Caroline Macedo
Como profissionais da saúde que atendem crianças, é fundamental repensarmos o lugar que temos dado aos dos pais no contexto clínico. Que escuta se faz aos saberes construídos pelos pais em relação aos seus próprios filhos e vivências? Há espaço em nossos consultórios para que o saber circule de modo a não ficar apenas do lado do especialista, mas que este também conte com as produções dos familiares em seu raciocínio clínico? Muitas vezes os pais são colocados meramente na posição de informantes da história pregressa dos filhos e como aqueles que necessitam de orientações e treinamentos em relação ao que fazer com as crianças.
Tais condutas sofrem influências do modelo médico de diagnóstico e tratamento. Neste formato, é o profissional quem detém um saber sobre o paciente a partir de seus conhecimentos sobre a doença; um saber universal e apriorístico que o conduz em seu processo diagnóstico e terapêutico. Nesta vertente, o atendimento à criança é iniciado com uma anamnese, tendo por objetivo recuperar o desenvolvimento somático da criança desde a gestação a partir de um levantamento dos antecedentes pessoais e familiares. Um questionário é elaborado a fim de detectar possíveis agentes causadores do problema que se queixam e a ênfase é dada aos sintomas enunciados pelos familiares, na etiologia e na evolução da doença. As informações colhidas são tomadas enquanto fatos, isto é, como a verdade em relação à criança (ARANTES, 2001).
Há uma derivação desse modelo diagnóstico, a partir de uma psicologização do discurso, em que, por meio de entrevistas ditas livres ou não-diretivas, passa a existir uma preocupação em se desvendar a causa também no psicológico, no social, no cultural, no discurso dos pais (ARANTES. 2001). Mesmo com a tentativa de mudança de prática, o modelo médico persiste, uma vez que não é apenas o modo de coletar o dado que caracteriza a anamnese ou a “entrevista livre”, mas também a interpretação que se dá ao material clínico e o lugar dado a ele no raciocínio clínico do profissional. Se há um raciocínio organicista, há a persistência de buscar uma justificativa para o que se apresenta de sintomático na criança (FUDISSAKU, 2009), seja no domínio orgânico ou psíquico.
Concomitantemente a essa busca de dados já carregados de sentido de antemão, uma vez que estão vinculados a concepções generalistas e causalistas, há, também, uma prática de orientação aos pais, na qual os clínicos são considerados os detentores do saber.
Assim, caberia a estes fornecer aos pais o conhecimento do modo como devem agir com seus filhos, o que reforça o saber do especialista em detrimento do saber parental. Isso age em prol de um saber fazer tecnicista, promovendo um apagamento daquilo que diz respeito justamente àquela relação, criança e família, ou seja, há um impedimento de que a experiência e o saber único dos pais e da criança possa vir à tona.
A psicanálise introduz uma outra lógica para a escuta dos envolvidos na cena clínica e tem suas próprias definições a respeito do que é a linguagem, o sujeito, a fala e o sintoma. A abordagem relatada anteriormente parte de uma ideia de homogeneidade e universalidade do sujeito e da linguagem como algo transparente e capaz de veicular informações. No entanto, trazendo o debate para o campo psicanalítico, é preciso considerar, como relembra Vorcaro (1995), a crítica feita por Lacan à suposta naturalidade da comunicação entre clínico e paciente. Lacan considera a relação a três e não a dois, propondo como terceiro a fala do paciente, sobre a qual o inconsciente irá se manifestar. Desse modo deixa claro que não há transparência da fala para quem a articula e para quem a escuta, uma vez que a palavra dita comporta desconhecimento.
Por isso, a ideia de comunicação de dados e de orientações se torna falha, já que existe algo para além daquele que fala e daquele que escuta a mensagem, que é a linguagem, estrutura que antecede e captura o sujeito. Há sempre algo falando mais além daquele que enuncia a oração e daquilo que está perceptível na oração. A palavra ultrapassa a pessoa que diz, falando para além do que é enunciado, e, por isso, buscar a compreensão dessa fala por meio da atribuição de significação impede a escuta. Essa compreensão reduz a língua à código, como se as palavras enunciadas fossem representantes de um sentido único, que pudesse ser delimitado, não podendo haver equívocos (VORCARO, 1995).
Superar o modelo médico é um grande desafio, no qual está implicado também uma certa superação da dicotomia em que um está na posição de sujeito, detentor do saber, e o outro de objeto. Devolver aos pais a palavra a respeito de seus filhos, suas preocupações, percepções e incômodos, possibilita a eles encontrar um lugar diferente de todos pelos quais passam na busca de resolver um problema e comporta uma surpresa com a descoberta de que eles também têm algo a dizer e que isso pode ser reconhecido por um outro. Poder construir um saber sobre o próprio filho, sobre a experiência de ser quem cuida dessa criança, e ter isso legitimado pelo olhar do clínico devolve aos pais a dimensão do quanto eles estão implicados no modo de relação que a criança vai criando com eles, consigo mesma e com o mundo. Isso quer dizer que a estruturação psíquica de uma criança não se dá de forma autônoma, mas sempre na relação com aquele que exerce os cuidados a ela.
*Psicóloga Mestranda em Comunicação Humana e Saúde pela PUC-SP. E-mail: barbaracmacedo@hotmail.com
Referências Bibliográficas:
ARANTES, L. Diagnóstico e Clínica de Linguagem. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.
FUDISSAKU, F. Sobre as entrevistas: a escuta para a fala dos pais na clínica de linguagem. Dissertação (Mestrado em Linguística aplicada e estudos da linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
VORCARO, A.M.R. Compreender ou estranhar: incidências no psicodiagnóstico. In: Ancona-Lopez, M. (Org) Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez editora, 1995, p.51-64.
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