Retardo de Linguagem: Questões Norteadoras
09/2011
Retardo de Linguagem: Questões Norteadoras
Treyce R. C. V De Lucca*
Chama atenção o número cada vez maior de crianças muito pequenas que chegam à clínica fonoaudiológica com queixa referente à fala. Elas chegam encaminhadas pela escola, pelo médico e, em alguns casos, por preocupação dos próprios pais. Cabe ao clinico conduzir sua escuta e tomar decisões que direcionam o processo terapêutico.
Os fonoaudiólogos devem refletir sobre a importância da fala dos pais ao enunciarem uma queixa de retardo de linguagem, atentando para o que eles consideram como sintomático na fala de seus filhos quando procuram a clínica fonoaudiológica – isto nos dá indícios sobre o que determinou o caminho que eles elegeram para conduzir o tratamento da criança; quais os sintomas apresentados pela criança; e de que maneira a escuta do fonoaudiólogo, que deve ser norteada por princípios teóricos e clínicos, pode determinar o encaminhamento dado a clínica. Para orientar este escrito convém circunscrever a definição do Retardo de Linguagem no campo da Fonoaudiologia. O Retardo de Linguagem é uma categoria nosológica que abriga manifestações lingüísticas heterogêneas. Sua definição no campo da Fonoaudiologia é bastante controversa, uma vez que, nesta área, como assinala Arantes (2001), as categorias nosológicas são, via de regra, definidas a partir do substrato orgânico que supostamente determina uma alteração de linguagem, tais como as afasias, as fissuras palatinas, a surdez, a paralisia cerebral, entre outras. O Retardo de Linguagem é, nesse sentido, uma exceção, pois suas causas não são atestáveis, o que faz com que ele se torne um quadro patológico cuja definição é pouco precisa. Autores como Ajuriaguerra (1983) - que aposta na presença de alterações perceptuais reconhece que o Retardo de Linguagem é um "Distúrbio de etiologia diversa e mal definida".
Cabe destacar que se trata de uma categoria ampla que inclui crianças de diferentes faixas etárias que não falam ou que apresentam um desenvolvimento peculiar de linguagem, até crianças muito pequenas que chegam à clínica e cujo diagnóstico envolve a difícil distinção entre normal e patológico (ARANTES, 2001; ANDRADE, 2006). Em uma leitura preliminar de trabalhos que versam sobre o tema do Retardo de Linguagem é possível constatar que não há uma abordagem teórica consistente que permita discernir o que caracteriza como patológicos determinados acontecimentos lingüísticos.
Um ponto complexo para a clínica são os casos de crianças pequenas cujo diagnóstico envolve avaliar a presença, ou não, de uma condição patológica. Durante o processo de estruturação da linguagem é possível observar rotas distintas, isto é, existem ritmos e estilos diferentes: há crianças que começam a falar mais tarde, mas que não necessariamente desenvolvem um quadro patológico. Muitas destas crianças pertencem à classe dos chamados falantes tardios: são crianças que começam a falar tardiamente, mas que alcançam um desenvolvimento de linguagem normal sem a necessidade de intervenção clínica. Porém, grande parte destas crianças denominadas “falantes tardios” (em torno de cinqüenta por cento) desenvolverão um quadro de retardo de linguagem e necessitarão de intervenção fonoaudiológica.
Rubino (2000) aponta que do ponto de vista clínico, a existência dos falantes tardios dificulta a decisão diagnóstica, pois é muito complexo distinguir aquilo que é uma variação individual do processo de aquisição da linguagem, daquilo que se configura como uma patologia de linguagem.
Para alguns autores (Lier-De VItto & Arantes,1998; Rubino, 2000) é necessário teorizar sobre a especificidade da fala da criança, mas segundo as autoras, isso implica necessariamente refletir sobre o papel do outro, e sobre os efeitos que esta fala produz em sua escuta, seja na escuta dos pais, ou na do próprio terapeuta, ou seja, no processo implicado quanto à posição que o clinico ocupa, pois ele precisa ter escuta para fala do paciente e fazê-lo ter escuta para sua própria fala.
A partir do que foi exposto, é possível observar a densidade das questões envolvidas nos casos de Retardo de Linguagem, questões relativas à sua origem, à distinção normal versus patológico, e, especialmente, uma reflexão sobre a linguagem. Todas essas questões se refletem diretamente no modo de se encaminhar a clínica, pois é a partir da posição do clínico frente a elas que decisões serão tomadas. Apostar num déficit orgânico pode justificar o atendimento indiscriminado de todos os casos que chegam à clínica, sem considerar a complexidade neles envolvida. Já a naturalização da distinção normal/patológico imposta por esses casos, pode significar assumir o atendimento de uma criança apenas levando em consideração a queixa da mãe. Não empreender uma reflexão sobre a linguagem, sobre o modo de presença do sujeito na linguagem, e desconsiderar assim a relação estreita entre estruturação da linguagem e estruturação subjetiva faz com que as questões como aquelas envolvidas no encaminhamento dos casos que apresentei acima sequer sejam consideradas. Nesse caso, corre-se o risco de não se discriminar os limites da clínica de linguagem.
Avalio que os aspectos apontados são relevantes e de grande importância para uma reflexão sobre a clínica de linguagem e sobre o papel do terapeuta neste espaço.
Considero, também, a importância de se discutir sobre o papel fundamental dos pais no processo de aquisição da linguagem; assim, é importante focalizar o olhar e abrir a escuta para o que eles dizem e, não somente para a criança sobre a qual eles se queixam. É necessário tentar entrever qual o entendimento que eles têm quanto à linguagem de seus filhos, a fim de assumir uma perspectiva que permita pensar um modo de incluí-los no tratamento. O foco incide, portanto, sobre a fala dos pais na clinica de linguagem, mas sem desconsiderar que a fala destes é determinada pelo modo de presença do terapeuta. Em cena esta a problemática das possíveis relações entre o entendimento dos pais quanto à linguagem de seus filhos e o modo como lidam com a fala deles, isto é, como escutam a criança, quais as hipóteses sobre as dificuldades da criança e como elegem o profissional que deveria conduzir o tratamento. Acredito que o eixo central nesta vertente é discutir como é a escuta do clínico para a fala desses pais, articulada à escuta para a fala da criança, pois parte-se da hipótese de que são estas escutas determinam o manejo clínico. Cabe ao clínico ter uma escuta particular para o que se presentifica na fala dos pais é diferente do que estes consideram como sintomático na fala de seus filhos. A partir dessas falas e de determinados princípios teóricos, o clinico tomará decisões pautadas na singularidade de cada caso.
Referências bibliográficas
AJURIAGUERRA, J. Manual de psiquiatria infantil. (tradução) GERALDES P, ALVES, S. São Paulo: Masson, 1983.
ANDRADE, L. Procedimentos de avaliação de linguagem na clínica fonoaudiológica: entre o singular e o universal. In M. F. Lier-De Vitto & L. Arantes (Orgs.), Aquisição, patologias e clínica de linguagem, 2006 (pp.349-359). São Paulo: EDUC-PUCSP.ARANTES L. Diagnóstico e Clinica de Linguagem. Tese de Doutorado. LAEL PUC-SP, 2001.
____ Impasses na distinção entre produções desviantes sintomáticas e não sintomáticas. In: LIER-DE VITTO MF, ARANTES L (orgs.). Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. São Paulo: EDUC, 2006. Pg. 219 – 226.
LIER-DE VITTO, MF, ARANTES, L. Sobre os efeitos da fala da criança: da heterogeneidade desses efeitos. Letras de Hoje, v. 33, n. 2.1998.
RUBINO, R. “Os falantes tardios como uma categoria limite entre a normalidade e a patologia”. In: Anais do 5o. Encontro Nacional sobre Aquisição da Linguagem e 1o. Encontro Internacional sobre Aquisição da Linguagem. Porto Alegre, 2000.
Colunas Anteriores
2022
-
Letícia Batista Gouveia
04/2022
A importância de um espaço de escuta aos pais de crianças autistas -
Solange Araujo
03/2022
A importância da escuta e do acolhimento aos pais frente ao adoecimento -
Bárbara Caroline Macedo
01/2022
Que lugar para os pais na clínica com crianças?
2021
-
Rafaela Joaquim Frizzo
12/2021
É preciso (re)pensar a forma de avaliar o paciente -
Juliana de Souza Moraes Mori
11/2021
A Fonoaudiologia e suas interfaces. -
Carlos Eduardo Borges Dias
10/2021
A IMPLICAÇÃO DA FAMÍLIA NA CLÍNICA DOS DESVIOS FONOLÓGICOS. -
Profa. Dra. Regina Maria Freire
09/2021
Estamos de volta com a nossa coluna mensal
2018
-
Gilberto Ferlin Filho
09/2018
COMUNICAÇÃO EM REABILITAÇÃO -
Patrícia Rocha dos Santos
08/2018
ESCUTAR OS PAIS PARA INTERVIR NAS ALTERAÇÕES DE LINGUAGEM DE CRIANÇAS ATENDIDAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE -
Pauline Luise von Brusky Sales da Fonseca Herbach
07/2018
PSICANÁLISE: DO TRATAMENTO DO AUTISMO AO CUIDADO COM O CASAL PARENTAL -
Daniela Iudice Rafael
06/2018
POSSÍVEIS SOLUÇÕES PARA A INSERÇÃO ESCOLAR DOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI -
Monica de Barros Cunha Nezan
05/2018
O QUE É QUE A CRIANÇA SABE, SEM SABER? -
Marcel Amaral Marques Ferraz
04/2018
O SUJEITO PARA A ANÁLISE DE DISCURSO (AD) -
ANANGÉLICA MORAES GOMES
02/2018
Linguagem e cognição na primeira infância -
ANA REGINA GRANER
01/2018
O grupo terapêutico em Fonoaudiologia e as questões da heterogeneidade nos usos da língua falada
2017
-
Maria Célia Delgado de Carvalho
12/2017
O sujeito nas intervenções da psicanálise nas escolas
-
Glaucineia Gomes
05/2017
Autismo, linguagem e escrita: alguns apontamentos
-
Silze Costa
04/2017
A intervenção psicanalitica na clínica com bebês
2016
-
Keila Balbinor
10/2016
Como o filme “Quando tudo começa” colabora com a reflexão sobre a gestão escolar na escola pública
-
Ivana Corrêa Tavares Oliveira
09/2016
A interlocução saúde e educação e a inclusão de estudantes com deficiência no ensino regular
-
Janaina Venezian
04/2016
Deve-se trabalhar com leitura e escrita na educação infantil?
-
Amanda Monteiro Magrini
03/2016
A inclusão dos AASI na rotina dos professores na educação especial
2015
-
Bruna de Souza Diógenes
12/2015
Programa de Estudos Pós-graduados em Fonoaudiologia da PUC-SP: análise da produção de quatro décadas
-
Profa. Dra. Regina Maria Ayres de Camargo Freire
11/2015
Algumas considerações sobre a Fonoaudiologia
-
Ivana Corrêa Tavares Oliveira
10/2015
O projeto Jogos da Cultura Popular como ferramenta de Inclusão
-
Keila Balbino
09/2015
O papel do professor no momento da alfabetização
-
Ezequiel Chassungo Lupassa
08/2015
O Marco Histórico da Alfabetização no Brasil
-
Adriana Gaião Martins
07/2015
O lúdico e a aprendizagem: Um recorte teórico
-
Janaina Venezian
06/2015
Educação impossível
-
Gisele Gouvêa da Silva
05/2015
O retorno à Demóstenes
-
Sofia Nery Liber
04/2015
O Filme "A Família Bélier" e a Psicanálise
-
Ivana Corrêa Tavares Oliveira, Sofia Lieber, Keila Balbino, Regina Freire
03/2015
“Contribuições da legislação para mudanças políticas na educação inclusiva no atual cenário educacional brasileiro”
-
Bruna de Souza Diógenes
01/2015
O Trabalho Grupal: Vislumbrando novos olhares/fazeres no processo de alfabetização
2014
-
Michele Picanço do Carmo
12/2014
Leitura e movimentos oculares
-
Sofia Nery Lieber
11/2014
Linguagem e subjetivação: sobre a natureza dessa relação
-
Bruna de Souza Diógenes
10/2014
Indicadores de Risco para os sintomas de linguagem: Interface Fonoaudiologia e Saúde Pública
-
Dayane Lotti e Adriana Gaião
09/2014
A leitura: cotidiana e motivacional
-
Ezequiel Lupassa
08/2014
Manifestações dos Distúrbios de Linguagem e da Aprendizagem
-
Regina Freire
07/2014
1ª Jornada Fonoaudiologia, Educação e Psicanálise
-
Juliana Mori
06/2014
Uma experiência na inclusão escolar de pessoas com autismo
-
Silvana Soares
05/2014
Mudanças na formação do professor: efeitos sobre a educação infantil e as séries iniciais
-
Manoela Piccirilli
04/2014
Uma reflexão sobre queixas escolares
-
Janaina Venezian
03/2014
Educação infantil e Fonoaudiologia
2013
-
Sofia Nery Lieber
12/2013
A voz não se confunde com o som
-
Dayane Lotti, Isabela Leito Concílio
10/2013
Serviço de Apoio Pedagógico Especializado (SAPE): reflexões acerca da Sala de Recursos a partir de uma experiência em uma escola da rede pública da zona norte do Estado de São Paulo
-
Cinthia Ferreira Gonçalves
09/2013
A posição do aprendiz no discurso dos professores
-
Keila Balbino
08/2013
Aluno: sujeito com conhecimentos que devem ser considerados no processo de alfabetização
-
Vera Ralin
05/2013
Aparatos tecnológicos em questão
-
Ivana Tavares
04/2013
A escrita como sistema de representação
-
Gisele Gouveia
03/2013
Semiologia Fonoaudiológica: os efeitos da sanção sobre o falante, a língua e ao outro
2012
-
Dayane Lotti; Isabela Leite Concílio
11/2012
Queixa escolar e seus fenômenos multideterminados
-
Alcilene F. F. Botelho, Eliana Campos, Enéias Ferreira, Maria Elisabete de Lima
10/2012
Alfabetização e letramento
-
Wladimir Alberti Pascoal de Lima Damasceno
08/2012
A Clínica da Gagueira
-
Cinthia Ferreira Gonçalves
06/2012
A Análise de Discurso e a Fonoaudiologia: possibilidades de um diálogo
-
Manoela de S. S. Piccirill
04/2012
A Inibição na Produção da Escrita
-
Regina Maria Ayres de Camargo Freire
03/2012
Uma segunda língua, para quem?
-
Manoela de S. S. Piccirilli
01/2012
A Inibição na Produção da Escrita
2011
-
Juliana Mori
12/2011
A escola e o bebê: é possível educar?
-
Gisele Gouvêa
11/2011
A questão da estrutura clínica em Fonoaudiologia
-
Christiana Martin
10/2011
Inclusão Escolar
-
Treyce R. C. V De Lucca
09/2011
Retardo de Linguagem: Questões Norteadoras
-
Kivia Santos Nunes
08/2011
O Silência e a Clínica Fonoaudiológica
-
Vera Lúcia de Oliveira Ralin
06/2011
Atuação fonoaudiológica na Educação - Um fazer possível
-
Cláudia Fernanda Pollonio
04/2011
Linguagem e Subjetividade: Sobre a natureza desta relação
-
Juliana Cristina Alves de Andrade
03/2011
O Sujeito e a Linguagem
2010
-
Regina Maria Freire
12/2010
A Alfabetização e seus Avatares – CAPES/INEP
-
Giuliana Bonucci Castellano
11/2010
Prancha de Comunicação Suplementar e/ou Alternativa: o uso do diário como possibilidade de escolha dos símbolos gráficos
-
Beatriz Pires Reis
10/2010
Demanda para perturbações de Leitura e Escrita, há um aumento real?
-
Fabiana Gonçalves Cipriano
08/2010
Sintomas vocais em trabalhadores sob o paradigma da Saúde do Trabalhador
-
Vera Lúcia de Oliveira Ralin
06/2010
Atuação Fonoaudiológica na Educação – Um fazer possível
-
Maria Rosirene Lima Pereira
04/2010
A clínica fonoaudiológica e o reconhecimento do falante
-
Hedilamar Bortolotto
03/2010
Transtornos Invasivos do Desenvolvimento: a clínica fonoaudiológica em questão
-
Fábia Regina Evangelista
01/2010
Indicadores Clínicos de Risco Para a Fonoaudiologia
2009
-
Gisele Gouvêa
09/2009
Coluna "Fonoaudiologia em Questão"
-
Cláudia Fernanda Pollonio
08/2009
A clínica fonoaudiológica: sua relação de escuta à fala
-
Apresentação da Coluna
06/2009
Coluna "Fonoaudiologia em Questão"